Agosto

(ou “Exercício: foco narrativo feminino sobre a depressão”) “O que será que me dáque me bole por dentro será que me dáque brota à flor da pele será que me…

(ou “Exercício: foco narrativo feminino sobre a depressão”)

“O que será que me dá
que me bole por dentro será que me dá
que brota à flor da pele será que me dá
e que me sobe às faces e me faz chorar
e que me salta aos olhos a me atraiçoar
e que me aperta o peito me faz confessar
o que não tem mais jeito de dissimular…”
– “O que será?” – Chico Buarque

No ciclo das águas chora a chuva, intermitente. Amedronta-me o inusitado escurecer. Raios riscam, rasgam, rompem os céus e o estrondo das ondas que se arrebentam na areia de ouro claro me assusta. Redesenho as paredes do meu quarto, dando-lhes a forma uterina. É assim que me encontro prisioneira, parada, pregada sobre a cama: posição fetal, a cabeça protegida entre braços e pernas, somente o arregalado olho à mostra, como o de gata retesada, mirando opressiva as lágrimas da chuva contra a vidraça e que, pouco a pouco, se perdem pelos valos, becos e ruas deste lugar bem junto ao oceano.

Esta força maior e irreprimível me leva a projetar tempo e espaço. O meu avesso se liberta, deixando-me nua e desarmada. Ouço Bolero, de Ravel. A sinfonia flui pelo meu espaço, revelando-me retratos da vida. Os meus retratos.

O que percebo? O que sinto ante o descortinar dos escaninhos emocionais? A ternura ausente e o aconchego do regaço de mãe em que se transfiguram as almofadas e as paredes do quarto que agora me protegem dos ventos, dos raios, das tempestades? No contraponto da música celestial do virtuose a prova evidente de que o paraíso existe algures? Ao mal o bem? Ao ódio o amor?

Reconhecer o tênue limite de uns e de outros significa abandonar o útero projetado, descruzar braços e pernas, jogar tudo p’ro alto e partir, ainda que de olhos fechados, ao encontro da chuva que desfigura, inunda e deixa esta aldeia intransitável ante o descaso e a insensatez de seus regentes públicos. Hei de sentir, então, o arrepio da pele e a água que há de escorrer-me dos cabelos e rolar pela nuca, pelos bicos hirtos dos seios – botões orvalhados na blusa transparente – evidenciando o ardente desejo da fêmea represada, não revelada.

Coragem? Sim, eis que viver as loucuras de uma paixão é preciso. É vital! Gemer, sussurrar, extasiada, isenta de culpa, à viagem sem rumo de mãos ainda estranhas percorrendo-me o corpo.

Não aceitarei submissa a estagnação das águas, o meio-termo! Hei de me rasgar e sangrar, e, se preciso, deixar, em cada relação, pedaços meus pelos caminhos.

Mais tarde, na paz de cada adormecer, hei de volver o pensamento e ter a insofismável certeza de que sempre há de valer a pena viver isso tudo.

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