Episódio VIII de As Crônicas de Aleph – Sergio Agra

VIVENDO E APRENDENDO A JOGAR Episódio VIII de As Crônicas de Aleph “Dói-me o universo porque a cabeça me dói.” Fernando Pessoa  Nas madrugadas primeiras na nova rua o estrondo…
Foto: Sergio Agra

VIVENDO E APRENDENDO A JOGAR

Episódio VIII de As Crônicas de Aleph

“Dói-me o universo porque a cabeça me dói.”

Fernando Pessoa

 Nas madrugadas primeiras na nova rua o estrondo das rodas dos bondes na interseção dos carris equiparava-se ao de uma colisão de aviões em pleno voo. Eu era acometido por pesadelos e despertava em sobressaltos.

Aquele bairro até meado do Século XX era predominantemente formado por ruas com antigas e modestas casas geminadas em cujas fachadas se descortinavam estreitas portas e janelas.  Nelas viviam descendentes de escravos, Mais tarde, desenhando um constrangedor contraste, ergueram-se os primeiros prédios de apartamentos, restando poucas das anacrônicas habitações em franca ruína que com pertinácia desafiavam a inevitável modernização e crescimento do distrito. As famílias mais desprovidas se viram por esta razão forçadas a migrar para arrabaldes distantes ou para as encostas dos morros das periferias.

Os novos moradores eram em sua maioria pertencentes à classe média: advogados e arquitetos em início de carreira, professores universitários, comerciantes, contabilistas, bancários, farmacêuticos, militares. Fora num prédio de apartamentos recém-construído do primeiro quarteirão daquela rua que nos instalamos. Aos poucos outros recém-chegados ali também iam se situando.

Eu não conhecia até então nenhum parceiro para os folguedos e para o início de uma amizade; somente duas irmãs que contavam quatro e dois anos de idade que moravam no mesmo pavimento. Era isso tudo, a meu juízo infantil, o fim dos tempos, — “Arre, brincar com meninas, estão doidos? Não! Mas não, mesmo!”. A mãe longe estava de se julgar insana, — “Não, senhor! Pra calçada é que você não vai! Quem afinal o senhor pensa ser? Ir para a rua, onde o tráfego de automóveis, ônibus e bondes põem até mesmo nós, os adultos, em risco?”. O pai endossara o discernimento de mamãe, — “Brincadeiras somente na casa das vizinhas! Para isso tens também o horário do recreio no pátio do colégio!”. Teimoso, eu não dava o braço a torcer, — “Eu sou homem! — protestava. — Não vou brincar de casinha com essas pirralhas!”. — “Vais acabar gostando.” — profetizara a mãe. — “Pois sim, eu quero é jogar futebol!”. O pai finalmente havia encontrado a solução para arrefecer minha pertinácia, — “Espera! Vou te inscrever na ACM, uma associação, que fica bem perto daqui! Além disso, teu maninho já está quase chegando!”. — “O quê, um irmão? Ah, mais esta: ter que dividir o quarto com esse intruso? E quem garante ser um menino?”. Meus pais se entreolharam, apanhados que foram pela minha argúcia.

Para meu maior desencantamento quem chegou, na verdade, não fora um “intruso” e sim a bela e rosada menina exigindo a divisão dos cuidados vindos dos pais.

Como prêmio de consolação me foi concedida a permissão para os divertimentos na larga calçada com os garotos das cercanias. Com o passar do tempo as inconsequentes brincadeiras evoluíram para o que nós, moleques, imaginávamos atributos de virilidade e coragem: exibições de luta-livre e caratê para impressionar as ingênuas meninas, mas que não passavam de pueris patacoadas. Eu jamais iria esquecer aqueles descompromissados dias, afinal…

Receba as principais notícias no seu WhatsApp

Comentários

Comentários

Notícias relacionadas